sábado, março 25, 2006

arqueologia


Martin Paul




Quando soaram as doze badaladas, a Gata Borralheira piscou o olho ao príncipe e desatou a correr pela larga escadaria. Deixou um sapato no primeiro degrau, de acordo com a instrução secreta da fada-madrinha e, como não era nada prático, descalçou o outro sapato, agarrou as saias que atrapalhavam os movimentos e começou a saltar os degraus até chegar à abóbora-coche que já estava aos pulos de nervoso miudinho.
Nos dias que se seguiram mostrava-se agitada, estava sempre a olhar para o relógio e, quando ouvia a campainha, corria ao espelho para arranjar o cabelo na certeza de que seria ela a escolhida do príncipe. Fazia os trabalhos caseiros com a cabeça na lua e todos começaram a notar que alguma coisa se passava, mas não ligavam porque pensavam que Gata Borralheira nunca seria nome de princesa e, naquele tempo, acreditava-se que o nome fazia parte do corpo assim como as mãos e os olhos.
De modo que, quando o príncipe bateu à porta, a Gata Borralheira já tinha a mala pronta escondida na despensa e nem foi preciso calçar o sapato porque o príncipe reconheceu-a logo e, sem ninguém se aperceber, abalaram para nunca mais voltarem.
Só à hora do jantar deram conta que a Gata Borralheira tinha ido embora. Não era possível! - dizia uma. Como foi possível? - dizia outra. É impossível! - dizia a mãe-madrasta, mostrando ser mais criativa que as filhas. Naquele dia comeram umas sandes diante da televisão e esqueceram de dar comida ao gato que andava às voltas diante da lareira apagada e lambia as lágrimas de saudade que lhe caíam dos olhos.
Durante alguns meses, o ambiente naquela enorme casa esteve de cortar à faca: roupa suja por todo o lado, louça escaqueirada pelo chão e pelo lava-louça, restos de comida que o gato emagrecido desdenhava, berros, correrias, portas a bater. Até que um dia a primeira notícia que ouviram na televisão foi o casamento dos príncipes do reino da fantasia. Logo reconheceram a querida irmãzinha, desaparecida sem deixar rastro, e começaram a atirar os bibelots empoeirados à televisão que continuava indiferente a mostrar tão importante acontecimento. Um desses bibelots era um sapatinho de cristal e a mãe-madrasta achou que tinha ali a solução para aquela confusão infindável. E tinha.
Ao anúncio que colocou no jornal responderam muitos pretendentes da grande finança que queriam ter na sua história de família um sapatinho de cristal e, desta forma, as duas irmãs casaram com dois irmãos banqueiros e fazem agora parte da confraria das Tágides que Agustina imortaliza em Espaços em Branco. Como são muito amigas da mãe-madrasta, deixaram-na esquecida num lar da terceira idade, lá para os lados de Benfica, onde Lobo Antunes colocou o pai do engenheiro, do Manual dos Inquisidores. A mãe-madrasta cisma que é a Branca de Neve e todos os que estão por ali naquele palácio de paredes nuas e brancas são anões, anões a mais, diz ela. São só sete! Só sete! Estão para aqui a confundir-me.
A Gata Borralheira anda revoltada. Afinal, a história saiu ao contrário e o príncipe transformou-se num sapo contratado para fazer anúncios na televisão. Passa o tempo agarrado ao teclado do computador e ela está a pensar seriamente deixar de lhe passar as camisas a ferro.
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