Não fiz o trabalho que devia. Não dei forma a personagens, nem os vesti com sentimentos esfarrapados e diálogos sentidos de saber humano à volta de uma receita lustrosa que enfeita o balcão aonde ela devia estar neste momento separando as gemas das claras, doseando a farinha e o açúcar com o aprumo de quem sabe que não tem os ingredientes todos para fazer exactamente igual, mas mesmo assim faz o melhor, o seu melhor. Não, ela não está na cozinha a fazer o seu melhor, deixei-a ficar sentada num dos solitários bancos da Foz e tirei-lhe os sentimentos. Está frio nesta época, mas ela não sente porque não é real. Ele deveria estar para chegar, no entanto, um problema no trânsito vai atrasar o seu regresso impedindo-o de lutar para que o silêncio e a penumbra de uma casa se transformem num precipício onde nada existe para se agarrar. Ele fica preso no trânsito então. Ela sentada num banco na Foz. Quando estiver mesmo noite escura, seguirá pelo jardim e meter-se-á por umas ruelas da velha Foz. Não quero saber mais dela. Dele, se fosse possível, secava-lhe os sentimentos também, mas uma pessoa no trânsito é uma pessoa de carne e osso, não adianta. A qualquer momento chegará a casa. Cedo, tarde, mas chegará abrindo a porta para o precipício. E a única coisa que vai ver antes de cair será a receita e os ingredientes.
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