segunda-feira, abril 17, 2006

crónica à volta das naus*


imagem daqui


Dei-me conta de repente que estava a viver uma situação que não me era estranha, uma situação mais que real. Ia jurar que a realidade, ela mesma, leu o mesmo livro que eu e quis pôr-me à prova, ali, em Belém, como se me desafiasse: olha lá, alguma vez te aconteceu estares a viver um determinado momento, um determinado tempo e sentires que tudo te era familiar, que já viveste aquilo, leste aquilo, sonhaste aquilo? E eu acenando que sim com a cabeça, sem me aperceber da figura que fazia assim diante de um poeta, um velho poeta, sentado a uma mesa de café, escrevendo um poema, umas folhas A4 amontoadas, um livro, uma sacola em cima da cadeira.
Faltava o caixão, é certo. O outro poeta, que costumamos escrever com p grande, tinha-o sempre consigo. O caixão com o corpo do pai que trouxera de África - vai-se lá deixar os nossos por aquelas terras! O café onde escrevia o grande texto, que nem os professores lêem, também não era em Belém. Ficava perto de Santa Apolónia e, se calhar, o aspecto também não seria tão acabado, pois carregar o caixão do pai ainda é coisa que exija um bocado de força. Este velho poeta venerando, se carregasse um caixão, seguramente que estaria vazio. Mas não havia caixão nenhum. Havia apenas um homem de cabelos e barbas brancas e um olhar profundo, muito para além de cada palavra que escrevia à beira Tejo. Eu estava ali a ver uma passagem de um livro que fala da nossa história recente com personagens de um passado heróico e oficial e aquilo perturbou-me como se estivesse numa catedral e a imagem no altar me olhasse, e eu incrédula, de olhos fixos, e a imagem a abrir e a fechar os olhos e a sorrir, e eu paralisada.

Se não tivesse lido o livro, com certeza que me limitava a pensar para mim: olha, está ali um poeta conhecido, respeitado, muito respeitado. Velho já, é verdade, mas os poetas, por mais novos que sejam, têm que aparecer aos nossos olhos como velhos arautos de verdades que sentimos e às quais eles dão a forma escrita. No entanto, o livro ainda estava fresco na memória. Avancei para o poeta, como se estivesse a avançar para todos os poetas, pedi desculpa por interrompê-lo, perguntei-lhe o nome e estendi-lhe a mão para me sentir de carne e osso.

* As Naus, de António Lobo Antunes

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