sábado, agosto 05, 2006

à sombra da literatura ll


Eye on World Wide Web


Era domingo. Àquela hora da noite os autocarros circulavam quase vazios. Um passageiro aqui outro ali quebrava a nudez da luz desmaiada do interior. A cidade estava tomada pelo murmúrio do calor nas esquinas das ruas. J.I. caminhava energicamente como se acabasse de se lembrar que tinha um corpo a que era preciso dar uso Uma tarde para a feira do livro com um objectivo e o objectivo a derreter-se face àquele amontoado de pessoas atentas à escritora cujo nome não era estranho, embora tudo mais fosse. Acabou por comprar o livro da rapariga lunática assim como se compra um objecto de que não se precisa, mas que naquele momento, por razões insondáveis, parece ter alguma utilidade.
Passava das dez da noite quando entrou no apartamento onde morava. A sala revelou-se na espera silenciosa, uma ténue claridade vinda da iluminação da rua desenhava sombras indefinidas pelo chão e J. I. dirigiu-se à janela. O cheiro a seiva ainda se sentia. A árvore que existira ali desde sempre diante do prédio tinha sido abatida há dias, mas aquele coto resistia e sangrava perfumando o ar de uma morte viva. Um brinquedo atirado ao chão, um choro de criança, vieram lembrar-lhe que não estava só no mundo, a vizinha do terceiro traseiras brincava muitas vezes com o filho até tarde. Passara um ano desde que para ali viera, habituara-se àquela criança, ao arrastar de pés pela noite dentro da velha do apartamento de cima, à rouquidão dos canos da água a desoras, quando já só se espera o abandono do sono.
Deu-se conta que conservava o livro na mão e largou-o em cima da mesinha, ligou a televisão e estendeu-se no sofá. Grandes populações de moluscos, vermes e outros…diz-me a verdade não me….damos por encerrado o debate, agradecem…durante a segunda gue… essa alternância não os afecta graças aos mecanismos de defesa osmótica, algumas espécies de peixes, como enguias, trutas e salmões, passam parte de suas vidas na água doce e parte na água salgada. As enguias podem mesmo viver algum tempo fora da água atravessando prados entre os rios.
Resistir era o lema da avó. Não queria lembrar-se dela, devia seguir a preceito as indicações da psicóloga, trabalhar, conviver, namorar, divertir-se, largar o computador. No princípio ainda ensaiou uma explicação do tempo perdido diante do monitor, o mundo que ali estava, como o preenchia, mas o tédio de verbalizar as emoções era uma barreira que não queria vencer e limitou-se a aceitar passivamente todas as explicações do momento que estava a viver. Aceitava com a certeza de que alguém lhe roubara a única âncora que nunca mais poderia reaver.

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