terça-feira, agosto 01, 2006

à sombra da literatura



Russell Burden


A escritora estava sentada ligeiramente curvada sobre a mesa em que tombavam os exemplares da sua obra que, momentos antes, havia sido objecto de saborosos comentários de um ilustre catedrático.
Vestia um discreto fato cinzento, uma blusa com suaves ramagens em tons rosa e um foulard rosa também mas mais escurecido. Atrás de si um enorme painel com a imagem a preto e branco das dunas de Esposende tendo em primeiro plano a escritora enquanto jovem. Do ângulo em que J.I. se encontrava podia observá-la sentada na parte da frente da cadeira deixando atrás de si, entalada contra as costas da cadeira, uma bolsinha também ela rosa, debruada com uma tira preta que se estendia recobrindo a alça. Os cabelos finos, escassos e aloirados, um olhar limpo e penetrante como se pensa ser o olhar de quem lê a alma. A humildade do gesto repetido vezes sem conta em dedicatórias a ilustres desconhecidos que ali mendigam uma letra, uma réstia de romance.
A memória de J.I. rebobinava o essencial da comunicação feita pela escritora antes da sessão de autógrafos. Que considera que nasceu velha e vai morrer jovem; que isso é facilmente observável pela enorme vontade em ser tagarela, coisa que não fazia quando era jovem de facto; que perde imenso tempo a ouvir os outros, mesmo desconhecidos que encontra na mercearia, com quem mantém longas conversas sobre coisa nenhuma; que o mais importante é saber ouvir; que a capa do livro é uma aguarela intitulada A Rapariga Lunática; que, no fundo, é o que a personagem principal do seu livro é; que, no fundo, é o que todas as mulheres são; que, enfim, só servem para a maternidade e pouco mais.
O calor abafado do Verão antecipado agitava a fila de espera que teimava em não evoluir em direcção à fonte. Muitos dos felizes contemplados aproveitavam e descarregavam em cima da mesa de autógrafos pilhas de livros, recentes e mais antigos, da vasta colecção da escritora. O olhar distraído e impaciente de J.I. passeava-se pelos stands das diferentes editoras e fixou-se numa t-shirt preta onde se lia masturbation is not a crime que recobria o corpo ainda imberbe de um adolescente acompanhado pelos pais satisfeitos que seguravam pela mão uma miúda.
O recinto da feira esvaziava-se de visitantes pouco a pouco. A escritora parecia cansada e olhou na direcção da fila para medir a quantidade de autógrafos a debitar. Um querer sonolento estava a tomar conta dos resistentes, a fila tinha diminuído consideravelmente. J.I. conseguiu o abraço escrito no livro da rapariga lunática e já sem sentir as pernas dirigiu-se para o exterior do pavilhão. Uma aragem quente envolveu-lhe os passos.
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