Vão chamar-me a leitora. Entrei neste livro num momento de descontracção em que fui atraída pelo vermelho (quem não é?) quando passeava pela baixa. Não sei se foi o negro, a ester, o borboleta, o azeitona, o cegonha, ou a bela shekuré que, escondidos nas badanas, me puxaram para dentro do livro e me instituiram narratário. Tratava-se de desvendar um crime. Básico. Ofereceram-me duas cidades, embora uma delas seja apenas falada, veneza e istambul. Levaram-me para uma época, finais do século dezasseis. Como adivinharam eles as voltas que lhe dou agora? Um ambiente, um estúdio, o grande estúdio. Uma arte, e que arte!, a pintura. E outro livro dentro do livro. E uma história de amor, khosrow e shirine.
Antes da pintura eram as trevas diz o azeitona. Conhecer é lembrar o que se viu. Ver é reconhecer o que se esqueceu. Sobre estas duas premissas assenta o mundo a oriente, por isso o pintor não procura um estilo próprio, foge dele até, pois o que deve fazer é reproduzir fielmente os primeiros grandes mestres e almejar a cegueira, o silêncio, o lugar mais profundo do quadro, o ponto cego, no qual Deus aparece em toda a sua obscuridade, posto que os grandes mestres procuram, através das cores, a escuridão profunda que está fora do tempo. É pela pintura então que chegamos a deus neste livro do qual sou leitora com direito a lavrar o meu próprio capítulo, como qualquer uma das personagens que enumerei e que me convocaram sempre que quiseram revelar-me a intensidade dos seus pensamentos, as dores e as dúvidas, as invejas, os desejos mais escondidos. De certo modo cumpro o papel de ester, a judia alcoviteira, sei tudo dos outros, mas como ela, não posso interferir no rumo da história, do destino, embora me seja possível apressar ou retardar as lágrimas da shekuré ou a ira do negro, não da mesma forma que a judia encarregada de levar e trazer cartas mas simplesmte acelarando ou adiando a leitura.
Ainda que não ligassem a mínima às minhas perguntas, não desistia de os indagar. A pintura ocidental por esses tempos andaria também envolvida nas questões da imitação, do estilo e da assinatura, e se a primeira, em sentido ontológico e salvaguardando as diferenças estético-religiosas, aproximava ocidente e oriente, o mesmo não se podia dizer das últimas, que na europa permitiram a certos nomes serem conhecidos como monstros sagrados do renascimento e do maneirismo, e que não deveriam ter nenhum complexo em se representarem nas obras que criavam, sem medo de heresias. Para os mestres seguidores da escola de herat, ter um estilo ou uma assinatura, mais do que mostrar os dotes artísticos, revelava as limitações do pintor porque ninguém consegue a perfeição de deus. Mas neste livro de muitos narradores e um narratário, o estilo destapa o rosto de um assassino.
Agora que os deixei devo dizer que trouxe comigo algumas imagens que quero partilhar contigo, leitor, e como não as podes observar, por motivos óbvios que nada têm a ver com o enredo, descrevo-as sucintamente e,em jeito de testemunho, peço-te que as guardes.
São cinco folhas soltas enroladas, cada uma com um desenho. Há um cão, uma árvore, um cavalo, o retrato de kosrow e uma mancha de tinta vermelha.
Antes da pintura eram as trevas diz o azeitona. Conhecer é lembrar o que se viu. Ver é reconhecer o que se esqueceu. Sobre estas duas premissas assenta o mundo a oriente, por isso o pintor não procura um estilo próprio, foge dele até, pois o que deve fazer é reproduzir fielmente os primeiros grandes mestres e almejar a cegueira, o silêncio, o lugar mais profundo do quadro, o ponto cego, no qual Deus aparece em toda a sua obscuridade, posto que os grandes mestres procuram, através das cores, a escuridão profunda que está fora do tempo. É pela pintura então que chegamos a deus neste livro do qual sou leitora com direito a lavrar o meu próprio capítulo, como qualquer uma das personagens que enumerei e que me convocaram sempre que quiseram revelar-me a intensidade dos seus pensamentos, as dores e as dúvidas, as invejas, os desejos mais escondidos. De certo modo cumpro o papel de ester, a judia alcoviteira, sei tudo dos outros, mas como ela, não posso interferir no rumo da história, do destino, embora me seja possível apressar ou retardar as lágrimas da shekuré ou a ira do negro, não da mesma forma que a judia encarregada de levar e trazer cartas mas simplesmte acelarando ou adiando a leitura.
Ainda que não ligassem a mínima às minhas perguntas, não desistia de os indagar. A pintura ocidental por esses tempos andaria também envolvida nas questões da imitação, do estilo e da assinatura, e se a primeira, em sentido ontológico e salvaguardando as diferenças estético-religiosas, aproximava ocidente e oriente, o mesmo não se podia dizer das últimas, que na europa permitiram a certos nomes serem conhecidos como monstros sagrados do renascimento e do maneirismo, e que não deveriam ter nenhum complexo em se representarem nas obras que criavam, sem medo de heresias. Para os mestres seguidores da escola de herat, ter um estilo ou uma assinatura, mais do que mostrar os dotes artísticos, revelava as limitações do pintor porque ninguém consegue a perfeição de deus. Mas neste livro de muitos narradores e um narratário, o estilo destapa o rosto de um assassino.
Agora que os deixei devo dizer que trouxe comigo algumas imagens que quero partilhar contigo, leitor, e como não as podes observar, por motivos óbvios que nada têm a ver com o enredo, descrevo-as sucintamente e,em jeito de testemunho, peço-te que as guardes.
São cinco folhas soltas enroladas, cada uma com um desenho. Há um cão, uma árvore, um cavalo, o retrato de kosrow e uma mancha de tinta vermelha.
* tudo em itálico do livro O Meu Nome É Vermelho, de Orhan Pamuk.
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