quinta-feira, junho 05, 2008

obra ao negro



Se tivesse que fazer um relatório para apresentar à pelicana, omitiria que hoje estive a trabalhar no manuscrito. Escreveria uma breve nota sobre a resolução do problema da menina plagiadora de um poema que até estava na net à mão de semear; lembraria a maneira como me despedi dos meus alunos de há três anos e como espero que os exames lhes corram bem, ou me corram bem a mim, se é que me faço entender; carregaria nos esforços finais de fecho de ano lectivo e terminaria indicando que, em anexo, seguia a minha ficha de auto-avaliação, na qual estariam sublinhados, da melhor forma possível, os objectivos atingidos. Evidentemente, não falaria de que modo me deixei atingir pelos olhares de cada um daqueles jovens, nem na inutilidade do meu trabalho em alguns momentos.

Se tivesse que fazer um relatório para apresentar a quem me orienta no trabalho do cancioneiro, claro que não diria que ando a misturar gabriela llansol, antónio vieira, céline, os salmos e yourcenar com o manuscrito; que estou neste momento a fundir tudo num cadinho, influenciada pelos tratados de alquimia que nunca li; que o espaço psicológico que habito é rua dourada do castelo de praga, a casinha azul de kafka, cheia de souvenirs e lettres au père, e também a candelária no rio de janeiro, uma bela igreja vazia em que me recolho numa manhã de nevoeiro, puxada por uma voz sem rosto que vem do púlpito e que me acusa não sei de quê.

Se tivesse que fazer um relatório para entregar a deus, sei bem que não adiantava omitir nada. Cuidaria de arranjar uma folha sem cabeçalho e escreveria apenas uma palavra: eu.


foto: pormenor de azulejo da bpmp

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