domingo, novembro 28, 2004

Prelúdio, continuação


Little gardener, Ned Young


Não. Era impressão sua, embora jurasse que, por vezes, a mãe falava sozinha no quarto, quando passava no corredor e encostava o ouvido à porta para se certificar que estava tudo bem.
Desceria agora, sentar-se-ia na outra cadeira e com a meiguice do seu olhar de criança prometeria mudar, esforçar-se mais, deixar um pouco os jogos, só um pouco. Que não, que o Paulo não é amigo da onça, que nunca o levou para a droga, que queria lá saber de drogas, que gosta muito dela, que.

Luísa está sentada e olha indefinidamente o jardim. Está vazia, não sente nada, não pensa em nada, como se tivesse travado uma batalha derradeira e tivesse chegado o fim de alguma coisa. Revê Saul criança a brincar com os patos que o avô tinha comprado para alegrar o petiz, Saul a rir, a correr, a colher pétalas de flores, a arrancar flores, a cair, a chorar. Saul a soletrar as primeiras palavras, nas cadeiras então brancas, a ouvir com atenção as histórias de príncipes e princesas que desfilavam etéreos lá pelo fundo do jardim, a disputar golpes infalíveis de powers rangers e outros seres extrovertidos e poderosos que povoavam o imaginário dos miúdos até acharem que sabiam tudo, que já sabem tudo.


Afinal tinha sido apenas mais uma discussão de muitas que se travavam desde que chegou ao segundo ciclo e teve que enfrentar uma batalhão de professores e matérias. Aquela adaptação nunca foi bem conseguida e, aos poucos, marcou o percurso escolar. Saul nunca conseguiria entrar numa faculdade e Luísa não sabia o que fazer, não sabia o que dizer. Sem qualificações, que futuro?
Deu-se conta que estava gelada. Os dias arrefeceram muito e o Outono já estava a despedir-se. Saul estava a jogar, ou a ouvir música, ou no computador com amigos de todo o mundo, ou ao telefone lá com o amigo de Moral.Saul estava.

Ouviu um ruído de folhas calcadas e voltou-se.

Sem comentários:

Arquivo do blogue

mail