prelúdio (três)

Salvador Dali, Mirage

Viu apenas a sombra das árvores despidas e o portão entreaberto mas nem se deteve a pensar se já estava aberto há muito tempo, se sempre esteve aberto, se foi aberto naquele momento.
Ecos da conversa retinem imparáveis nos seus ouvidos. A sua relação com Saul ainda dói. Encolhe-se sobre si mesma como se a contracção dos músculos abdominais lhe adormecesse a dor, mas sabe que tem de resistir e esse foi sempre o seu lema desde que passou a ser uma mulher só. Resistir, compreender, explicar. Aceitar. Não, ainda não está preparada para aceitar, abraça-se a si própria para se proteger do frio que voltou a sentir e levanta-se desviando inadvertidamente o olhar para a outra cadeira. O avô está lá sentado derramando sobre ela um olhar sábio e silencioso.
É possível vê-lo nitidamente. Direito, segurando com as mãos vigorosas uma bengala fixa no chão. Luísa sabe que é uma ilusão, mas as ilusões também podem ser reais e claras. Esta imagem foi uma das últimas. Sabe que precisa dela. Desde que Saul nascera, deixou de ser o pai, para ser o avô. O avô que protege mãe e filho. Foi possível ser feliz assim.