sábado, maio 07, 2005

momento (conclusão)


L. Aubiniere K.


O que tenho de decidir é muito simples. Devo ou não continuar com o meu plano? Eu digo qual é. Dentro de algumas horas alguém absolutamente desconhecido ligará para minha casa e informará o meu pai de que deve deslocar-se à polícia para recolher os documentos de identificação encontrados dentro do autocarro da linha trinta e oito. O meu pai é reformado e vai muitas vezes passear até à Foz. O passe permite-lhe todos os autocarros da cidade mas ele inclina sempre para aquele lugar. Diz que a mistura do cheiro do mar associado ao barulho dos carros na avenida o mantém vivo e depois sempre pode ver gente a fazer o mesmo que ele, ou seja caminhar e apreciar a paisagem. Ao contrário destes que vejo aqui sentados e que parecem aguardar passivamente a passagem das horas, o meu pai pretende ainda que a vida lhe traga surpresas e procura-as.
Quem vai entregar os documentos será a minha amiga, a casa de quem vou agora levá-los. Tirei-os antes de sairmos de casa, ele para o seu destino habitual, eu fingindo uma consulta médica. Estava decidida a fazer isso. Queria pô-lo à prova. Nunca vi o meu pai transtornado Um homem tão organizado, tão cuidadoso, ficará com certeza muito perturbado quando der conta de que perdeu os documentos. Imagino-o a fazer o roteiro detalhado: casaco, móvel, rua, paragem, autocarro. Onde? Esqueceu, perdeu, foi roubado? A tranquilidade a subir para uma névoa perturbadora, o coração a bater mais forte. De repente ver-se sem o nome escrito será um desnudamento. Eu sei que sou cruel, que este comportamento é reprovável e me revela doentia mas preciso de o deixar embaraçado, preciso de o fazer sentir que ele também tem as suas fragilidades e não pode controlar tudo ou já não pode controlar tudo. O meu pai sempre achou que eu era instável o suficiente para me indicar o que melhor me convinha. Comecei a aperceber-me do sufoco no tempo do liceu, depois casei e durante alguns anos libertei-me dele. Depois da morte da minha mãe e do meu divórcio eis que estamos juntos outra vez. Sinto uma necessidade urgente de o fazer entender que ele já não é o que era, quero que sinta que depende de alguém. De mim. Começarei por este pormenor, mas vou ficar mais um pouco, temo ter deixado algo por compreender, preciso de rever tudo e no fundo a ideia de regressar a casa antes dele e deixar os documentos bem à vista para o tranquilizar tão logo entre ainda me domina. Levanto-me agora e vou. Não voltarei atrás. O velho que está ao meu lado segue os meus movimentos, olho-o nos olhos e sorrio, ele não me retribui.

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