"O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases..." Clarice Lispector
quinta-feira, agosto 04, 2005
quimera
Bosch, Jardim das Delícias, painel central
Por detrás da duna espreito-te.
Pensas que estás sozinho. E estás sozinho.
Já descalçaste os sapatos e tiras a roupa,
enfrentarás o mar completamente nu.
Sinto a ferocidade das ondas penetrar nos poros
e purificar a alma com a forma do corpo.
Levantas os braços e inclinas a cabeça para trás
ofertando o pescoço às lâminas solares.
Um grupo de pessoas caminha pela praia.
Estás agora vestido, os sapatos amarrados
pelos cordões, descaem do teu ombro. Como tu,
andam à procura de um barco que não está lá.
Conversas por breves momentos
e eles seguem em direcção oposta à tua. Paraste.
Retrocedes. Acompanha-los à distância. Tens forças,
mas aquele não é o teu grupo de pertença.
Paraste outra vez. Olhas na minha direcção.
Vens chegando e eu contorno a duna.
Não consigo esconder-me. Passas por mim
e segues. Eu não faço parte da tua história.
laerce
Nota1: este texto foi inspirado numa passagem do livro Obra ao Negro em que o herói, Zenão, tenta mudar o seu destino.
Nota 2: “Os temas de Bosch bem como de Breughel sobre a desordem e o horror do mundo invadem a obra.”*
Nota 3: “ a fórmula Obra ao Negro, designa, nos tratados alquímicos, a fase da separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. É ainda discutível se uma tal explicação…significava simbolicamente as provações do espírito ao libertar-se de rotinas e ideias feitas.”*
*excertos retirados da Nota da Autora em Obra ao Negro
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