sábado, novembro 12, 2005

crime e castigo
A voz soava abafada sobre as prateleiras de livros solicitando a presença do proprietário do veículo, cuja matrícula era recitada pausadamente, junto do mesmo. Envolvidos pelas leituras de ocasião, os frequentadores da livraria permaneceram indiferentes ao apelo, o que dava para deduzir que a chave para aquela combinação de letras e números não se encontrava naquele recinto localizado na cave do antigo edifício Palladium, ali, no cruzamento das ruas Santa Catarina e Passos Manuel. Só quando as escadas rolantes me elevaram à altura das portas envidraçadas do rés-do-chão pude ver a confusão estabelecida no exterior. Um Mercedes cinza metalizado estava estacionado no lado esquerdo impedindo que o autocarro que desce Santa Catarina vindo da Batalha concluísse a apertada manobra de virar à esquerda e entrar na Passos Manuel. Uma pequena multidão ignorava a alternância de cores no semáforo e permanecia quieta ao longo dos passeios enquanto o motorista do autocarro, numa manobra bem calculada, deslocava o veículo para trás permitindo a chegada do rebocador da polícia ansiosamente aguardado. Havia semanas que o colorido das roupas leves desaparecera das ruas dando lugar às cores escuras dos casacos de Inverno que , juntamente com a luz embaciada da manhã , realçava a palidez dos rostos citadinos em deambulação pelas montras de muitos saldos e pouco saldo. Expressões soltas e sussurradas iam circulando pelo ar sem emissário definido enquanto os agentes da autoridade, num trabalho paciente e decidido, grampeavam as rodas e içavam a traseira do carro à altura do reboque: que lata! é preciso ter lata! nem viu a faixa amarela... não sabe que é proibido! é assim mesmo! que lata! é preciso muita lata!
Do outro lado, frente ao Majestic, decorria uma tomada de cenas para um filme publicitário com o aparato técnico que prendia momentaneamente os transeuntes, mas a personagem principal era mesmo o Mercedes que lá ia rua abaixo puxado pelos cabelos rumo ao depósito seguido à distância pelo estafado autocarro laranja que fazia chiar os travões pelos paralelos escorregadios.
Naquele cruzamento, onde o cheiro a castanhas assadas reconfortava e acolhia, o semáforo recuperava a sua autoridade e ninguém diria que ali se vivera, momentos antes, um julgamento de um crime e a execução de uma pena diante de olhos ocasionais de um fim de manhã na cidade cinzenta e granítica do norte.
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