sexta-feira, dezembro 23, 2005

natal é só se um homem quiser (conclusão)


Uma volta, outra volta e o trinco.Vejo aquela personagem. Ela não me vê, aliás, nem sabe que existo. Tanto melhor. Estou mais à vontade. Posso até passar-lhe à frente dos olhos, acompanhá-la no que, presumo, irá fazer. Claro que não terei a veleidade de a ajudar no que quer que seja. Primeiro porque não posso, já está tudo escrito. Segundo porque não quero atemorizá-la na sua solidão. Ela sabe que está sozinha e estar sozinha é colocar um prato no escorredor e saber que vai ficar lá até quando precisar dele e se lembrar deixei-o no escorredor. Bem, a personagem é um homem. Um homem com o retrato do filho em cima do aparador. O aparador não será bem um lugar para se colocar uma fotografia, mas neste caso faz todo o sentido. Assim como uma utilidade nova para um objecto que deixou de ter uso naquilo a que estava destinado. O aparador está encostado à parede, à minha direita. Eu estou voltada para a janela e, à esquerda, há uma poltrona junto da qual um aquecedor a gás aguarda o clique regenerador. Estou com frio e o homem cujo nome penso ser António Pacheco, de acordo com os envelopes abertos em cima da mesa, também está. Ainda não tirou o sobretudo e circula pela casa com um outro envelope na mão. Vai à cozinha, não o acompanho. Ouço o gás do fogão, à água a cair na chávena e, de repente, vejo-o na sala. Dirige-se ao aquecedor e liga-o. Agradeço-lhe esse gesto com um sorriso que só eu sinto. Relê o conteúdo da carta - digo relê por mera presunção, visto que o envelope já estava aberto - e deixa-a em cima da mesa. Quando regressa à cozinha, ainda esboço um movimento em direcção à mesa mas desisto tão logo António está de novo na sala. O seu vulto de homem envelhecido recorta a janela sem cortinas. Lá fora piscam as luzes de Natal num colorido impertinente como quem diz é Natal é Natal não estás a ver é Natal então não estás contente por ser Natal já compraste a prendas já sabes onde vais consoar, já já já…
Não, o homem não responde. Toma o chá e continua com o sobretudo vestido. Não me surpreende nada, eu também tenho frio. Tento ainda interessar-me por aquele cenário, que história se passaria ali. É uma casa antiga, sente-se que parou no tempo apesar do tiquetaque insistente. As flores envelhecidas podem apenas indicar que alguém, de tempos a tempos, vai lá arejar a casa e dar-lhe esse mimo colorido e perfumado. Alguém que está a demorar.
Sentado na poltrona, o homem fixa os olhos na fotografia, encontrou o ponto de apoio, uma lágrima escorre-lhe pela face.

A notícia não se alargava em pormenores, dizia apenas que um aquecedor a gás tinha estado na origem da morte de um idoso, naquele Inverno rigoroso. Na televisão, um vizinho salientou que o homem vivia sozinho há muito tempo e que morreu sem vencer a batalha que travava há longos anos para saber o paradeiro do único filho.
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Teresa Almeida Rocha,Águia II
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