sexta-feira, janeiro 20, 2006

veludo l


Pat Canova


Digo que é um amigo apesar de raramente o ver. Quando o acaso nos coloca frente-a-frente, retomámos a conversa do último encontro como se entretanto nada mais se tivesse passado na vida de cada um. O meu amigo chama-se Eduardo Veludo e trabalha no teatro. Da última vez, encontrei-o no supermercado, na secção dos iogurtes, toquei-lhe de leve nas costas e continuei o caminho, atenta à reacção. Quando me reconheceu abriu-se num sorriso e sem demoras a conversa caiu no tema de interesse comum, o teatro.

Convém que eu o apresente naquilo que sei, naturalmente. Veludo é encenador e actor numa pequena companhia que resiste, sabe-se lá como. O local onde leva à cena os trabalhos é um velho teatro de um desses shoppings que abriram com pompa nos anos oitenta, mas que agora estão às moscas e no Natal exibem uma iluminação entristecida e depenada que não consegue disfarçar o abandono e o envelhecimento do espaço. A idade não pesa para o meu amigo. O olhar penetrante e inquieto mostra alguém que está de corpo inteiro na vida e sempre que lhe pergunto como consegue resistir diz-me que é por carolice, ele e os outros que são poucos. A companhia tem apenas quatro elementos, mas ao certo - pergunto eu para lhe dar força - quantas pessoas são precisas para se fazer teatro? Basta uma.

Bem, uma, sim, uma pessoa pode encher um palco. Pode representar uma peça, tantas há assim…mas não interessa. Veludo tem com ele mais três pessoas a trabalhar e investe em peças que possa levar às escolas (se bem que haja outras companhias de teatro que fazem o mesmo e é um ver se te avias com o Auto da Barca, o Falar Verdade a Mentir, o À Beira do Lago dos Encantos, só para falar de algumas). Neste momento, tem em palco, às terças, quintas e sábados à noite, uma peça cujo autor não consegui fixar. Muito interessante e curiosa e actual. Como dois actores estão momentaneamente fora do grupo de trabalho, um devido à preparação de uma tese de mestrado e outra devido a doença, Veludo foi obrigado a assumir um dos papéis na peça (aliás mais que um) para evitar que saísse antecipadamente de cartaz. Para variar, convidou-me a assistir à representação. Não precisava de mais nada, bastava chegar à bilheteira e dizer que era amiga do Veludo e podia entrar. Para variar disse que iria.

Mas desta vez fui mesmo. Tinham-me ficado da conversa umas referências soltas à facilidade de certas pessoas em mudar de personalidade, mudando de nome. Claro que no dia-a-dia essa facilidade limita-se a mudar de roupa, colocar adereços variados se se está apaixonado, entusiasmado, desiludido, essas coisas que os livros explicam e os horóscopos confirmam ou desmentem. Não passa pela cabeça de ninguém que tenha lido Pessoa, que algum dia ele tivesse saído à rua e alguém dissesse, vai ali o senhor Caeiro, ou o senhor Reis, ou o senhor Campos.

O shopping é deprimente. Umas tristes lojas de ferragens no rés-do-chão, um cheiro concentrado de borracha e gasolina vindo da cave, onde um soturno parque de estacionamento retira a tranquilidade a quem, por falta de lugar na rua, é obrigada a deixar ali o carro. Subi pela escada rolante que estava avariada, cheguei à bilheteira, identifiquei-me e entrei.


...
laerce

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