Como calculava, a tipologia da sala seguia o modelo do teatro de arena, o palco no meio, envolvido pela plateia que se resumia a uns andaimes dispostos em quatro filas, a última das quais colocava os espectadores muito próximos do tecto. A suposta intimidade daquele pequeno espaço era anulada pelo frio que se sentia e pelos lugares vazios que separavam as pessoas que ali se encontravam e que, pensei, deveriam ser amigos de amigos dos actores e do próprio Veludo. Detive-me no palco. Um estrado forrado de preto pontuado por um banco de jardim, desses bancos de ripas vermelhas já com a tinta um tanto descolorida, cravejada de corações, datas e nomes de um lirismo passageiro e vulgar, e umas pilhas de livros num evidente contraste de espaços que o desenvolvimento da peça desvendaria.
Quando as luzes da sala se apagaram, dois vultos surgiram de uma porta simétrica à entrada e encaminharam-se para o palco, como cegos que conhecem demasiado bem os caminhos a percorrer. Ocuparam o centro do estrado e um foco de luz incidiu sobre eles. Estavam vestidos da mesma forma e cobriam a cabeça com uma manga que deixava visível apenas os rostos. Reconheci o Veludo e a actriz pareceu-me bastante jovem, escondida naquele traje sem contornos específicos.
Rapidamente foi entendida a disposição cénica dos objectos. Seriam dois espaços diferentes, ocupados alternadamente pelas personagens que durante toda a peça, e apesar de dialogarem, não se conheciam, não se viam. Aos poucos, um som de teclado de computador, quase imperceptível e intermitente foi tomando conta da sala como uma música de fundo.
O conteúdo das falas abrangia a arte das palavras, o que elas escondem e o que revelam. Quando cabia a ele estar junto dos livros, espalhava-os pelo chão, empilhava uns poucos e subia em cima deles para declamar o que considerava ser os seus autores absolutos, enquanto ela lia sossegadamente sentada no banco. Na vez dela se ocupar dos livros, arrumava-os cuidadosamente dispondo-os por tamanhos de modo harmonioso e ele entretinha-se a gravar corações no já massacrado banco de jardim.
A intensidade do diálogo que incluía, da parte dele, o recurso à assunção de novos nomes, num rodopio de falas com níveis de língua diferentes, misturando sentimentos e citações, aumentava a possibilidade das personagens se olharem e deixava despertos os espectadores que já teriam esquecido o frio e viviam com curiosidade o desenrolar da acção. Por mim, estava concentrada na capacidade de representação de Veludo, o ele daquela história meio absurda que pretendia mostrar a precariedade de afectos virtuais no sem limite de redes que se tecem via computador.
Na verdade, não consigo me lembrar de muito mais. Quando a peça terminou, e depois das palmas e dos abraços dos que estavam mais perto do palco, pude aproximar-me de Veludo e da jovem actriz e cumprimentá-los calorosamente pelo excelente mas perturbador momento que me tinham proporcionado. Da próxima vez que o encontrar vou fingir que esqueci do nome da peça quando na verdade nunca o soube, mas será que isso é importante?
Quando as luzes da sala se apagaram, dois vultos surgiram de uma porta simétrica à entrada e encaminharam-se para o palco, como cegos que conhecem demasiado bem os caminhos a percorrer. Ocuparam o centro do estrado e um foco de luz incidiu sobre eles. Estavam vestidos da mesma forma e cobriam a cabeça com uma manga que deixava visível apenas os rostos. Reconheci o Veludo e a actriz pareceu-me bastante jovem, escondida naquele traje sem contornos específicos.
Rapidamente foi entendida a disposição cénica dos objectos. Seriam dois espaços diferentes, ocupados alternadamente pelas personagens que durante toda a peça, e apesar de dialogarem, não se conheciam, não se viam. Aos poucos, um som de teclado de computador, quase imperceptível e intermitente foi tomando conta da sala como uma música de fundo.
O conteúdo das falas abrangia a arte das palavras, o que elas escondem e o que revelam. Quando cabia a ele estar junto dos livros, espalhava-os pelo chão, empilhava uns poucos e subia em cima deles para declamar o que considerava ser os seus autores absolutos, enquanto ela lia sossegadamente sentada no banco. Na vez dela se ocupar dos livros, arrumava-os cuidadosamente dispondo-os por tamanhos de modo harmonioso e ele entretinha-se a gravar corações no já massacrado banco de jardim.
A intensidade do diálogo que incluía, da parte dele, o recurso à assunção de novos nomes, num rodopio de falas com níveis de língua diferentes, misturando sentimentos e citações, aumentava a possibilidade das personagens se olharem e deixava despertos os espectadores que já teriam esquecido o frio e viviam com curiosidade o desenrolar da acção. Por mim, estava concentrada na capacidade de representação de Veludo, o ele daquela história meio absurda que pretendia mostrar a precariedade de afectos virtuais no sem limite de redes que se tecem via computador.
Na verdade, não consigo me lembrar de muito mais. Quando a peça terminou, e depois das palmas e dos abraços dos que estavam mais perto do palco, pude aproximar-me de Veludo e da jovem actriz e cumprimentá-los calorosamente pelo excelente mas perturbador momento que me tinham proporcionado. Da próxima vez que o encontrar vou fingir que esqueci do nome da peça quando na verdade nunca o soube, mas será que isso é importante?
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laerce
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