segunda-feira, novembro 06, 2006

a capuchinho vermelho (conclusão)




Sempre a repetir estas duas regras, a capuchinho entrou de novo na floresta. Com ela iam dois duendes sorridentes que há muito tinham trocado a floresta por uma carreira partidária, o da direita levava um saco e o da esquerda um pau de limoeiro pois nunca se sabe o que pode acontecer e o lobo mau era bem capaz de preparar uma cilada inesperada para abafar a capuchinho. Os ruídos da floresta são conhecidos desde que se lêem histórias infantis e foi também por isso que nem a capuchinho nem os dois duendes se aperceberam do verdadeiro silêncio que os rodeava. As folhas não balançavam, as flores não desabrochavam, o sol não brincava às escondidas, os animais não respiravam, não havia olhos curiosos à espreita atrás dos troncos, nem fantasmas adormecidos dentro das árvores à espera da noite para lhes vestirem os ramos. Só se ouvia os passos dos três intrusos afinados e decididos pelo caminho vezes infinitas trilhado das histórias contadas que a memória guarda para sempre. Passaram a fonte cristalina e apenas um fio de água retorcido e inaudível se despegava das pedras e desaparecia na terra indiferente, passaram a casa da avozinha mas nem se deram ao trabalho de olhar, fartos de saber que há muito o caruncho e as teias de aranha povoavam aquele espaço mítico, andaram, andaram e quando deram conta estavam outra vez na entrada da floresta. Nesse momento perceberam que algo estava mal, entreolharam-se perplexos, a capuchinho dizia que não podia ser, que não foi para isso que se fez ao caminho e os duendes, então, ter-se-iam já esquecido de onde vieram? Voltaram à floresta e começaram a dizer em voz alta que ninguém tivesse medo, que iam em missão de paz, queriam apenas apanhar o lobo mau que estava muito gordo e que certamente era responsável por aquela desolação, aquele abandono. À capuchinho pareceu-lhe ouvir umas palmas e perguntou aos duendes se também tinham ouvido. Claro que sim, que ouviram, era melhor repetir as mesmas palavras, mais alto ou mesmo aos gritos. Como era de esperar a capuchinho ficou calada por se lembrar da regra número dois, mas os duendes encarregaram-se de espalhar a velha nova: o lobo mau era o culpado, vamos prender o lobo mau. Nem foi preciso muito, como um eco, as palmas invadiram a floresta e aqueceram a vontade da capuchinho em levar o seu plano até ao fim. Faltava encontrar o lobo e a capuchinho lembrou-se de um outro caminho, mais sinuoso, onde outrora tivera com ele longas conversas, atraída pela simpatia e delicadeza de um animal tão tenebroso. Ao chegarem perto de uma árvore carcomida um som estranho e cansado obrigou-os a abrandar o passo. Encostado ao tronco, o lobo olhava-os com a curiosidade dos sábios habituados a muitas privações e a muitos contratempos.
E o lobo perguntou à capuchinho por que trazes dois duendes, é para te agarrar melhor; por que tens uma voz tão meiga, é para te os ludibriar melhor; por que só agora é que apareces, se há trinta anos repartes o poder. A capuchinho não sabia a resposta porque a pergunta não constava do conto original e ela ficou mesmo perdida, tão perdida que teve vontade de gritar, mas conteve-se. O lobo mudou de assunto e, lembrando os tempos antigos, achou que a capuchinho o poderia ouvir sobre as dificuldades e injustiças que a vida na floresta comporta, achou que podia dar um contributo para que a floresta voltasse a ser uma floresta, quis lembrar que não vivia sozinho que havia outros lobos e que outros animais poderiam ser tão maus como ele, mas a capuchinho não queria ouvir, tapava os ouvidos com as mãos e abanava a cabeça recitando a primeira regra: o lobo é mau é gordo, maugordomaugordomaugordo, vamos matar o lobo. Num ápice, os duendes apoderaram-se da pele do lobo e desataram a correr enquanto a capuchinho, desesperada, se escondia nos arbustos. O lobo, despojado da pele, deitou-se desolado à porta da toca ignorando-a por completo enquanto a via pé ante pé a afastar-se dali.

Na conferência de imprensa que a capuchinho deu na semana seguinte, acolitada pelos duendes sorridentes, havia a pele de lobo estendida diante dos microfones como prova de que tinha cumprido os objectivos. A paz estava assegurada. Quando a conferência terminou e não havia mais ninguém na sala, os duendes resolveram brincar com a capuchinho e estenderam-lhe a pele pelas costas.
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