terça-feira, janeiro 09, 2007

era uma e outra vez



Lembro-me do filme em que Whoopi Goldberg fala continuamente ao telefone, com ninguém. Levo a mão ao bolso e retiro o telemóvel para confirmar a chamada, número marcado, dia cinco de Janeiro, às dezassete e trinta e nove, conversação durante dois minutos e oito segundos. Falei, ouvia a respiração calma do outro lado, pude confirmar que o local de encontro era conhecido sem dúvida, não havia que enganar. Enquanto caminho pelo paredão de volta ao carro vejo a varanda.
Há uma criança na varanda. Sei que tem uma ferida no braço. A ferida parece não ter cura, arranca pedacinhos da crosta e aos poucos começa a sangrar, muito dias, os dias das férias nas salesianas, verão. A ferida não pode curar. À noite as irmãs vão para a varanda depois de fazerem os curativos a todas as outras meninas que durante o dia se magoaram nas corridas do jardim ou na praia. E aquela, sem saber porquê, tem direito a uns minutos na varanda junto das freiras, a ver o mar e o rio numa luta cega de águas em desvario, pontuadas pelas lanternas de pequenos barcos de pesca. Um mundo de mistério, naufrágios, partidas sem regresso a embalar o sono, o barco.
Há um barco na barra preso nas areias, carcaça ferrugenta que em tempos despertou excursões dominicais no eléctrico que vinha da Praça, descia ao Infante e chegava à Foz já a tarde tinha cumprido metade do caminho, um barco para as desventuras contadas. A Pipi tinha um barco de aventuras, verdadeiro barco. Dormia com o cavalo e o macaco dentro de casa. Aquele não era o barco da Pipi, era o barco da menina na varanda. Descobria-lhe a sombra no negrume, medonha, a água em remoinhos em volta do casco rodeando os sonhos.
Há apenas a varanda. A casa das salesianas é uma creche, um horto tomou conta do jardim. Alguém sai do horto, parece ter um ramo de flores, mas toma a direcção oposta à minha. Apresso o passo no estranhamento que preenche a tarde.Quero mais do que um trabalho de pesquisa. Tenho uma história e urgência em contá-la, para que não se rompa no silêncio, não fique gasta na memória, não se dissolva em fios de distância. Já não me assusta o papel do narrador, o que sabe ou o que não sabe, se faz ou não parte de algum passado. Há uma história para um narrador e hoje o narrador sou eu.
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