quinta-feira, julho 05, 2007

crónica de inês


Inês sabia representar aquele papel, conhecia todas as interpretações que faziam dela e do gago, gostava de chegar a casa, dar o jantar aos filhos e depois deitar-se no sofá a pensar no vazio e adormecer. Colo de garça parecia ela ouvir por detrás dos olhares aparentemente cordiais enquanto sorria timidamente. Não a incomodava o duplo sentido da expressão. Gostava de alimentar aquela corrente com suposições e certezas acerca dela com o gago, e dela sem o gago. Por isso, todos os dias depois de mandar os filhos à escola, fazia questão de se sentar no banco do jardim e riscar no chão de terra batida o nome do seu marido que estava em espanha há um bom par de anos, mas que ninguém esquecia porque, quando vinha de férias no verão, pagava rodadas e mais rodadas de cerveja nos bares da vila e ai de quem brincasse com a honra da família que logo ali se resolvia um destino como quem torce o pescoço a uma galinha. A verdade é que nunca ninguém brincou com a honra da família, pensava ele, mal, pensava ela. Contava-se até uma história, muito em segredo. Que este gago pedro gostava de sangue humano a latejar num coração quente. Claro que ninguém tinha a ousadia de dizer fosse o que fosse com receio de ficar sem coração. Pedro ia vivendo naquele engano de alma que a realidade não deixa durar muito, enquanto inês educava os filhos no respeito pelos velhos, pelos animais e pelas plantas, e os filhos concordavam com os conselhos e corriam para a consola de jogos ou para a internet e que ninguém os incomodasse. Os da vila não levavam inês a sério, embora não o dissessem directamente como se sabe. Achavam-na louca, não só por riscar diariamente o nome do marido na terra batida ou por falar com as boninas quando brotavam no meio da relva do canteiro onde havia um busto de luís de camões, mas também por estar convencida de que um dia seria rainha e todos lhe beijariam a mão.

Imagem: José Guimarães, Inês de Castro



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