domingo, março 02, 2008

personagem-tipo



O único tribunal em que estive foi o da barca do inferno, na qualidade de leitora. Ali, o julgamento sumário das personagens que acabam de morrer desenrola-se num cais e os argumentos de defesa fazem rir qualquer um, tão clara se torna a sua natureza contrária à moral e aos costumes. A sentença é executada na hora, sem delongas. O anjo e o diabo cumprem a sua missão e os acusados, por mais que esperneiem, acabam por aceitar a condenação. Os leitores ficam felizes, tudo acaba bem, os maus são castigados, os bons premiados, e para não ser um fardo muito pesado para o condenado, cola-se-lhe uma etiqueta de personagem-tipo com o objectivo de se saber que não é o desgraçado que está ali a expor-se mas sim todos os da sua laia que são abrangidos por esta decisão.
Esta alegoria condenatória perpassa hoje diante dos nossos olhos, e não é preciso chegar ao extremo de imaginar a alma de um professor no cais vicentino para saber que são eles os réus da actualidade. Nem vale a pena desfiar aqui os argumentos de acusação, tão banalizados estão nos textos jornalísticos, orais e escritos, na blogosfera, na cabeça de cada juiz de bancada, que também os há no que à educação diz respeito.
As partes estão claramente constituídas. Os advogados de defesa, segundo a acusação, são todos vermelhos, ou então não sabem o que dizem, ou são insolentes, ou são estes e aqueles. Na realidade parece nem sequer haver defesa, à míngua de recursos e movimentações cénicas que possam representar o esforço individual e as circunstâncias continuamente variadas de cinquenta ou noventa minutos de aula, mais o tempo que se passou em casa ou seja lá onde for a preparar, ou antecipar a aula. O veredicto, como agora é moda, aglutina-se apenas numa figura de anjo e diabo.O que não está programado é o réu recusar-se a ser personagem-tipo.


foto: camélias no jardim de s. lázaro, porto


...

Sem comentários:

Arquivo do blogue

mail