segunda-feira, julho 23, 2007


quinta crónica de inês

A linda inês tinha-lhe suplicado a vida a troco do exílio, comparara as feras com os seres humanos, sendo aquelas mais humanas do que estes. Chorara, lembrando a loba que alimentou remo e rómulo, pedira clemência, prometera deixar pedro, sair pelo frio da noite quando a vila estivesse a dormir, tudo em troco da vida, não aquela que as histórias lhe davam, mas a vida de respirar, de sentir o frio e o calor, de envelhecer com lembranças à volta. Para afonso, aquelas comparações não tinham sentido nenhum. A bem da verdade, nem se preocupara em compreendê-las, pois só quando o poeta as cristalizou em versos no terceiro canto dos lusíadas é que começaram as riscar lágrimas de beleza e dor. O que o preocupara era acabar com aquela farsa uma vez por todas. Errara na escolha da mulher para o filho, primeiro a branca que nunca se fez mulher, depois a constança manoel que fora casada em palavras de futuro com afonso castelhano, dito o bom, o qual a repudiaria em troca da fermossísima maria, sua amada filha, e por fim aquela chorona, que não fora escolhida, claro, mas que acontecera, e o acontecer não podia entrar nas coordenadas do poder, e o pedro sabia muito bem disso. Bonita era ela, e os filhos, sempre pensara em três, pareciam aterrorizados. Por que raio de sorte tinha de ser ela daquela gente? Certo é que a história devia ser cumprida e seria ele o mandante. Contudo, afonso ignorava a reacção do filho, a sede de vingança em sangue, ignorava o macabro cortejo nocturno de sessenta quilómetros até alcobaça ao gosto gótico de quem espera o beija-mão, para confirmar com os olhos que a terra há-de comer que sim, que foi verdade. Ignorava as trovas de garcia de resende, a castro de antónio ferreira, camões, manuel figueiredo, faria e sousa, afonso lopes vieira, agustina, herberto hélder, ignorava fernão lopes e tantos, tantos outros. Os vizinhos que se aperceberam das estranhas movimentações na casa do gago amontoaram-se à porta e abriram alas para a cadeira de rodas do velho empurrada por diogo lopes pacheco. Dois conselheiros ficaram lá dentro a concluir os pormenores. Algo se tornara confuso para afonso, aquele povo não devia estar ali, como era possível a arraia miúda envolvê-lo nessa hora? Não era aquele lugar o paço de santa clara? E não devia ser inverno?



nota1: não me atrevi a mexer no rumo da história, aceito-a. os nomes que cito, para além de camões, são de todos aqueles que construiram o mito.
nota 2: a imagem é de uma das fontes nos jardins do palácio de cristal, no porto.
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